Em Os Cus de Judas, António Lobo Antunes conta a viagem obligatória de um médico lusitano das forças armadas em Angola ao início dos anos setenta, durante os vinte e sete meses do serviço à pátria salazarista, ao Estado Novo de um Portugal adormecido num bem-estar de costumes, dos retratos dos avós em medalhas na parede, das jarras de flores de plástico no tampo dos frigoríficos, a intelectualizar a condição dele em frases longas cheias de imagens em sucessão, no ritmo lento da morosidade, monólogo que fala de manuelismo enquanto descobra um mundo fora da sua vida anterior, da sua experiência, do seu ser, sob o olho sempre presente da Pide.
Do lado do estilo, temos metáforas e comparações históricas, literárias, em frases longas que nos levam no fluxo delas, leitores flutuantes passando de uma imagem à outra, como as ideias na mente, ligadas umas à outras por um fio quase invisível mas tão forte, e as vírgulas sucedem-se, as palavras atuam por si próprias, escapam-se em bandas, agrupam-se para se tornar mais fortes, para ganhar sentido e esclarecer a situação das personagens, da vida delas e dar ecos na nossa.
Eu tinha-me casado, sabe como é, quatro meses antes de embarcar, em agosto, numa tarde de sol de que conservo uma recordação confusa e ardente, a que o som do órgão, as flores nos altares e as lágrimas da família emprestavam um não sei quê de filme de Buñuel enternecido e suave, depois de breves encontros de fim-de-semana em que fazíamos amor numa raiva de urgência, inventando uma desesperada ternura em que se adivinha a angústia da separação próxima, e despedimo-nos sob a chuva, no cais, de olhos secos, presos um ao outro num abraço de órfãos. E agora, a dez mil quilómetros de mim, a minha filha, maçã do meu esperma, a cujo crescimento de toupeira sob a pele do ventre eu não assistira, irrompia de súbito no cubículo das transmissões, entre recortes de revistas e calendários de actrizes nuas, trazida pela cegonha da vozinha nítida do furriel de Gago Coutinho, explicando, alfa, bravo, romío, alfa, charlie, ómega, o abraço do batalhão.Os Cus de Judas (edição Dom Quixote, 2004) foi escrito em 1979 por António Lobo Antunes, nascido em Lisboa em 1942. Recebeu o Prémio Franco-Português em 1984 por este romance.
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