Escrito à primeira pessoa, «O miúdo que pregava pregos numa tábua» não usa muito o eu. Prefera utilizar expressões contornadas, perifrases vindo de um pasado que talvez possa ser o do narrador ou não, a memória enganando-se com tantos episódios da televisão ou do cinema que nem sabemos se todas as nossas memórias são verdadeiras ou não.
Assim o auto flutua entre as épocas, de miúdo no Porto até a guerra em Angola, das primeiras experiencias sexuais com a criada, do piano que toca naturelmente sem tê-lo aprendido ao ritmo da poesia.
Mas onde é que tudo comeceu? Talvez num lugar chamado Chãs, em Águeda, onde uma velha prima, antes do miúdo entrar para a escola oficial, tenta ensinar-lhe a ler. Nunca mais aprendo, se calhar sou burro, diz o miúdo que pregava pregos numa tábua e que, nessa altura, devia ter quase seis anos. Às vezes sobe para cima de uma cadeira e recita: Lá vão elas / As caravelas. Foi-se o nome do autor e o resto do poema. São os primeiros versos que o miúdo, suponho que eu próprio, aprendeu de cor. Ficarão para sempre dentro de mim.O miúdo que pregava pregos numa tábua (editora Dom Quixote, 2010, 111 páginas), escrito por Manuel Alegre, nascido em Águeda em 1936.
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